A ideia de Justiça da Deficiência nasceu em 2016 com o coletivo “Sins Invalid”, como forma de resistência à opressão enfrentada pelas pessoas com deficiência.
Por Graziela Sarmento
Ainda pouco conhecida e divulgada no Brasil, a ideia de Justiça da Deficiência nasce como forma de resistência à opressão enfrentada pelas pessoas com deficiência. A bandeira de alerta ao tema foi levantada pelo coletivo estadunidense “Sins Invalid” que, em 2016, começou a desenvolver e descrever essa perspectiva, baseada na vivência e experiência das próprias pessoas com deficiência não brancas, pelo entendimento de que os direitos existentes não as representavam completamente.
A Justiça da Deficiência, como o próprio coletivo sinaliza, ainda não é um movimento popular muito conhecido, nem mesmo um conceito, mas uma visão e prática de um futuro onde todos os corpos são valorizados igualmente. Ela reconhece que cada corpo é único e essencial, com suas próprias forças e necessidades que precisam ser atendidas. São poderosos justamente por sua complexidade e características interseccionais que não podem ser vistas e tratadas de maneira separada (raça, gênero, classe, etnia etc.), tema que já foi abordado por aqui (leia o artigo sobre interseccionalidade).
O coletivo se constrói por meio da compreensão de que as estratégias baseadas em direitos identificam apenas os sintomas da injustiça, que aqui podemos entender como, por exemplo, quando a deficiência é usada para fazer piadas, quando o atendimento prioritário é negado ou mesmo quando não há acessibilidade. Entretanto, se faz necessário compreender sua raiz, o capacitismo. E a partir desse entendimento, o coletivo trabalha para aprofundar seu conhecimento e combatê-lo, criando práticas alternativas enraizadas na justiça.
Princípios da justiça da deficiência
O movimento se baseia em dez princípios-chave que guiam a união das pessoas com deficiência e pessoas aliadas na luta anti capacitista, que são:
- 1) interseccionalidade
Uma pessoa com deficiência também pode ser impactada pelo seu gênero, etnia, idade, religião, dentre outros. Todas essas experiências importam.
- 2) liderança das pessoas mais afetadas
A liderança feita por pessoas que são mais impactadas pelo sistema desigual pode contribuir para uma melhor visão da realidade enfrentada e ajudar a encontrar estratégias criativas de resistência.
- 3) anticapitalismo
O valor das pessoas com deficiência não está em sua capacidade de produzir cada vez mais, seguindo a norma do sistema capitalista.
- 4) solidariedade entre diferentes causas e movimentos ativistas
Desafiar outros movimentos como o feminista, LGBTQIA+, dentre outros, a confrontar o capacitismo para que seja criada uma frente unida onde a Justiça da Deficiência possa crescer como movimento.
- 5) reconhecimento da totalidade
Pessoas com deficiência são pessoas inteiras, que vivem e constroem uma história própria. Cada pessoa tem suas próprias experiências de vida.
- 6) sustentabilidade
Os ritmos individuais e coletivos precisam se ajustar para que todos possam seguir adiante em um ambiente justo e libertador a longo prazo.
- 7) solidariedade entre diferentes deficiências
Romper com o isolamento entre as diferentes deficiências e pessoas que sofrem com o capacitismo para que todo o coletivo possa desfrutar de um mundo mais justo.
- 8) interdependência
É preciso trabalhar para que as diferentes necessidades dentro das comunidades sejam conhecidas e não dependam apenas de soluções estatais e sejam controladas por elas.
- 9) acesso coletivo
Como funcionamos de formas diferentes dependendo do contexto e ambiente, o acesso coletivo se dá por meio de criatividade e engajamento para explorar possibilidades de acesso para além do corpo normativo e isso não é motivo de vergonha.
- 10) libertação coletiva
Apenas se movimentando juntos, considerando as diferentes habilidades, etnias, gêneros e classes ninguém ficará para trás.
Tema no Brasil
No Brasil, algumas pessoas engajadas no tema, como Anahí Guedes de Melo e Marivete Gesser, estão começando a discutir a Justiça da Deficiência, na busca de mudanças práticas, no sentido de tornar as discussões sobre deficiência independentes de padrões de acesso e inclusão, ou seja, sair do pensamento hegemônico. Isso significa descolonizar o pensamento dominante sobre deficiência, de que pessoas com deficiência têm menos valor por estarem fora do padrão, tornando as discussões mais inclusivas e acessíveis para todas as pessoas.
É importante notar que embora as pessoas com deficiência sejam o público-alvo de políticas para garantir a acessibilidade, este não é o único grupo de pessoas que tem sua qualidade de vida melhorada com essas ações, demonstrando que iniciativas voltadas para inclusão podem ter impactos positivos muito além do esperado.
A Justiça da Deficiência é um movimento em direção a um mundo mais justo e inclusivo, onde todos são valorizados pelo que são.
Gostou do assunto? Quer conhecer mais?
Contracartilha de Acessibilidade: Reconfigurando o Corpo e a Sociedade (Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia, 2020)
Skin, Tooth, and Bone – The Basis of Movement is Our People (Sins Invalid, Segunda Edição, 2019)
Grazi Sarmento
Acredita na inclusão de pessoas com deficiência e é aliada na luta pela garantia de direitos deste grupo, sem deixar de lado todas as interseccionalidades que atravessam esses corpos. É estagiária da Santa Causa e trabalha com inclusão de pessoas com deficiência há 10 anos, já tendo passado por projetos esportivos, culturais e artísticos e, atualmente, atua na área de empregabilidade. Está finalizando o mestrado em Comunicação Acessível (IPLeiria) e Diversidade Cultural e Inclusão Social (Feevale).
Sobre a Santa Causa
A Santa Causa é uma empresa de treinamento e consultoria que tem como missão promover a inclusão de grupos minorizados, melhorar a gestão inclusiva das empresas e tornar o ambiente de trabalho mais diverso, inovador e feliz.