Minha transição de gênero e a visibilidade trans no Brasil

Minha transição de gênero e a visibilidade trans no Brasil

No mês da visibilidade trans convidamos a consultora e mulher trans, Walleria Suri, para compartilhar sua experiência e um pouco sobre o universo da transgeneridade.

Por Walleria Suri*

Minha transição de gênero teve início no dia em que, finalmente, tive a coragem de assumir para o mundo ser uma mulher trans. Um belo dia, quando eu não mais suportava viver escondida, cumprindo cotidianamente, um papel social que não me representava em absolutamente nada, eu encarei de frente minha imagem refletida no espelho e disse que daquele momento em diante, eu lutaria contra o mundo todo, mas não lutaria mais contra minha própria essência.

“Naquela mesma tarde eu levei em um brechó todas as roupas masculinas que eu tinha, e lá troquei por roupas femininas, e no dia seguinte fui trabalhar vestida como uma mulher. Foi assim que nasci como Walleria Suri, aos 34 anos, após praticamente três décadas fingindo ser um homem cisgênero para ser aceita pela sociedade.”

Medo e capacitismo

O medo de enfrentar o preconceito que atinge de forma tão implacável as pessoas trans foi o que me fez passar tanto tempo negando para mim e escondendo da sociedade minha verdadeira identidade de gênero. Eu temia que assumir uma identidade trans no Brasil poderia anular definitivamente minha já precária inserção social, por causa do capacitismo que eu já enfrentava desde o final da adolescência, em decorrência de uma severa deficiência visual. Como nunca tinha visto uma outra mulher trans com deficiência, eu não fazia ideia do que poderia enfrentar ao iniciar uma transição de gênero num país com índices tão altos de violência contra LGBTI+ e de extrema exclusão e invisibilidade das pessoas com deficiência. Por isso, eu queria me sentir forte e preparada para enfrentar tudo o que viria, antes de decidir iniciar minha transição. Esse sentimento nunca veio, mas eu acabei “me assumindo” assim mesmo, para não enlouquecer ou tirar minha própria vida.

Transição

No entanto, muitas mulheres e homens trans iniciam o processo de transição já na adolescência, existindo também quem manifeste uma clara identidade trans ainda na infância.

“Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o processo de transição de gênero não começa com as intervenções hormonais e cirúrgicas responsáveis pelas modificações corporais almejadas por pessoas trans.”

Muito mais do que um processo clínico de tratamento médico, a transição é um movimento íntimo de autoafirmação de uma pessoa trans que tem início quando ela passa a se apropriar dos elementos e signos que socialmente pertencem e representam gênero diverso daquele que lhe foi atribuído ao nascer, em função de sua constituição biológica. A amplitude da transição de gênero ocorre de forma única para cada pessoa trans, envolvendo um conjunto de fatores que vão desde a compreensão individual de gênero até a realidade econômica da pessoa, passando por valores estéticos, culturais e afetivos cristalizados em sua personalidade. Dessa forma, a adoção de um nome social ou o hábito de pintar as unhas, desenhar a sobrancelha e usar maquiagem já podem simbolizar o início de uma transição, em se tratando de uma mulher trans, que pode ou não evoluir para transformações físicas mais profundas.

Afirmação social e de gênero

A redesignação sexual, por exemplo, é um procedimento cirúrgico que faz parte de todo processo de transição de gênero, mas esta intervenção cirúrgica não é essencial para que a transição ocorra. Seja por convicções pessoais ou impedimentos clínicos, há muitas mulheres e homens trans que não colocam a readequação genital entre suas demandas de transição.

“A compreensão de que o pertencimento a um gênero humano não é definido pela anatomia genital do corpo de alguém, tem levado muitas pessoas trans a não incluírem cirurgias de readequação genital em seus processos de transição.”

Até mesmo a utilização do termo “processo” para indicar a trajetória de transição de uma pessoa transgênero, tem sido criticada por parte do ativismo trans. Tais críticas apontam para a conotação reducionista do termo, que imprime a ideia de uma transição de gênero exclusivamente associada a procedimentos e protocolos médicos. A transição é fruto do anseio de afirmação social de gênero da pessoa trans, e o “Processo Transexualizador” é um suporte de especialidades médicas destinados a oferecer métodos de transição que preservem a saúde psíquica e corporal de transgêneros.

Porém, a transição está muito além dos atendimentos ambulatoriais e intervenções cirúrgicas oferecidas pela medicina. E, na grande maioria dos casos, ocorrem sem que a pessoa trans tenha acesso a esses suportes médicos, pois estes ainda são escassamente oferecidos pelo SUS, em algumas capitais do Brasil e está muito longe de suprir toda a demanda nacional de mulheres e homens trangêneros.

Cenário de exclusão, hostilidade e violência

Assim, de forma precária, sem suporte profissional e expostas a um cenário de exclusão, hostilidade e violência, a população trans do Brasil tem encarado com muita resiliência e dignidade o desafio vital de realizar a transição. Eu juntei-me a essa comunidade já adulta, realizei uma transição profunda que envolveram cirurgias e mudança de nome nos documentos. Foi o que serviu para mim e apaziguou meu conflito identitário. Mas jamais isso pode ser entendido como uma regra para todes. Contudo, além de materializar minha identidade de gênero feminina, a transição me ensinou muito sobre as relações humanas. Eu precisei não enxergar para ver o que existia além do meu olhar e precisei romper com o determinismo biológico do meu gênero para compreender o vasto universo da transgeneridade. Talvez, se minhas características pessoais fossem outras, eu jamais conseguiria enxergar o mundo das pessoas que vivem excluídas do mundo.

Visibilidade trans

Eu acredito no contato desarmado de resistências como uma via poderosa para quebrar tabus e romper paradigmas. Quando o outro é visto com mais profundidade e amplitude, sua condição humana se torna evidente.

O contato, quando adequadamente estabelecido, tem o potencial de eliminar o estranhamento que gera o preconceito, que por sua vez, produz a rejeição, a exclusão e a violência contra quem é apenas diferente.

“Pois este estranhamento só pode ser sustentado por uma relação de permanente afastamento proposital entre os que atendem e os que não atendem determinados padrões sociais.”

Nesse sentido, minhas ações e projetos tem como principal finalidade diminuir o máximo possível o distanciamento social que nutre o estranhamento hostil entre seres humanos fisicamente ou culturalmente diferentes. Afinal, é a nossa diversidade… a diversidade humana, que revela a grandiosidade de toda humanidade. Nossa humanidade!

*A autora do texto, Walleria Suri, é consultora em diversidade, ativista pelos direitos humanos e mulher transgênero com baixa visão.

Quer saber mais sobre o tema?

A visibilidade da pessoa trans no trabalho

Dia de combate ao racismo e a Transfobia

Glossário do Instituto Saudiversidade com os principais termos relacionado ao tema Diversidade e Inclusão