A saga de uma ouvinte em um arraiá de surdos

“Diferente da maioria das festas, não foi possível percebê-la à distância pelo som da música e da animação traduzida na voz alta dos participantes. Não tinha música alta tocando”. Dia 26 de setembro, é celebrado o Dia Nacional do Surdos. Esse texto é sobre a saga de uma ouvinte em um arraiá de surdos.

Recentemente a nossa equipe teve a grata oportunidade de realizar um trabalho para um grupo de pessoas surdas que estão criando uma organização social. Foi um desafio muito grande para nós – embora tenhamos estudado um pouco de LIBRAS, não temos domínio da língua – , mas foi também uma experiência que nos trouxe muitos aprendizados e satisfação.

Como consequência desse trabalho recebemos um convite para participar, em julho, de um arraiá na sede dessa organização que está nascendo, arraiá de surdos, mas também com ouvintes. E lá fui eu, em um bonito sábado ensolarado, em direção a Pinheiros para participar da festa.

Diferente da maioria das festas, não foi possível percebê-la à distância pelo som da música e da animação traduzida na voz alta dos participantes. Não tinha música alta tocando. Os participantes em sua maioria conversavam gesticulando usando a língua de sinais. Era impossível saber quem era surdo e quem era ouvinte.

No inicio me senti muito deslocada, comecei a tentar resgatar meus parcos conhecimentos em LIBRAS, mas não lembrava nada que fosse me ajudar naquele momento. Aí comecei a andar por lá e buscar rostos familiares. Demorou um pouco, mas fui encontrando, diversas pessoas surdas, ouvintes, alguns intérpretes de LIBRAS, algumas pessoas que eram surdas oralizadas, todas pessoas que ao longo desses anos trabalhando com inclusão fizeram parte em algum momento da minha vida.

Resolvi então aproveitar a festa. No caixa, assim como nas barracas de comidas e bebidas sempre havia surdos e ouvintes para recepecionar as pessoas. Apesar da maioria dos participantes serem surdos e os ouvintes que eram amigos e familiares terem conhecimento em LIBRAS, a festa era muito inclusiva. Não tive dificuldade alguma de ser atendida e comecei a preferir o atendimento das pessoas surdas porque elas me ensinavam os sinais em LIBRAS e essa troca foi muito rica pra mim. Aprendi o sinal para vinho quente, quentão, cachorro quente, entre outros.

Havia muitas crianças, surdas e ouvintes, que brincavam juntas sem problema algum. Nesse momento eu fiquei refletindo e me perguntando em que fase da vida perdemos essa capacidade de lidar com o mundo com a leveza das crianças.

Em dado momento os diretores da organização resolveram fazer um discurso. Então pediram para os ouvintes que não sabiam LIBRAS irem para frente, em um determinado local, que uma pessoa iria fazer a tradução para a Língua Portuguesa. Uma coisa que é tão comum para as pessoas surdas em eventos, foi uma novidade pra mim: não poder escolher onde eu ficaria e não compreender, sem ajuda, a fala do orador.

Me diverti quando alguém subiu em um banco e começou a acenar para os convidados com um celular na mão. Era um celular perdido, mas como não era possível anunciar em um sistema de som, foi necessário mostrar o aparelho até encontrarem o dono. Que foi encontrado rapidamente. Ainda bem!

Saí de lá achando tudo tão incrível, pensando como um mundo que compreende suas diferenças como algo bom e enriquecedor pode evoluir muito mais, com menos desigualdade, uma vez que todos tem oportunidade. Esta foi a saga de uma ouvinte em um arraiá de surdos.

Hoje, dia 26 de setembro, é celebrado o Dia Nacional do Surdos. É uma data importante para nos conscientizarmos que a acessibilidade diz respeito também a comunicação, instrumento fundamental para nós seres humanos convivermos em sociedade. As pessoas surdas, mais do que ninguém, gostam e querem se comunicar, mas principalmente, ter direito a essa comunicação, onde estiverem. E é nosso papel como sociedade que respeita e valoriza a diversidade garantir esse direito.

Agradeço a organização Vem Sonhar pela oportunidade de trocas e aprendizados e quero desejar muito sucesso a esse trabalho árduo que vocês vem realizando para garantir mais autonomia e a participação das pessoas surdas.

Por Aline Morais, causadora.